Doenças da tiroide: entrevista com a especialista

data de publicação27 Agosto 2021 entrevista a
Isabel Manita  |  Endocrinologista

As doenças da tiroide afetam mais de 1 milhão de portugueses. Quem o afirma é a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), referindo que há ainda muitos casos por diagnosticar.
A Dra. Isabel Manita, Endocrinologista na Cintramédica, explica-nos qual a função que a tiroide desempenha no nosso organismo e quais as principais patologias relacionadas com o funcionamento desta importante glândula.

No final da entrevista temos também o testemunho de Sandra Cardoso, 45 anos, diagnosticada com hipertiroidismo, que partilha connosco a sua experiência com a doença.

O que é a tiroide?

A tiroide é uma glândula, em forma de borboleta, situada na base do pescoço. É uma das glândulas mais importantes do corpo humano, uma vez que produz hormonas fundamentais para a nossa vida. É controlada pela hipófise, no cérebro, assim como a maioria das glândulas estudadas pela Endocrinologia. Nem nos damos conta que a temos, mas a realidade é que, quando deixa de funcionar, surgem muitas alterações no funcionamento normal da pessoa.

Qual a sua função?

As glândulas tiroideias atuam de forma generalizada em todos os órgãos e sistemas do organismo. Não é possível viver sem hormonas da tiroide. As hormonas tiroideias são responsáveis por uma série de ações como a manutenção da temperatura, o crescimento do cabelo ou o bem-estar físico e psicológico. Por um lado, a ausência de hormona tiroideia (hipotiroidismo) provoca grande cansaço, depressão, a pele extremamente seca e dificuldade no funcionamento intestinal. Por outro, se é segregada demasiada quantidade de hormonas tiroideias (hipertiroidismo) temos uma sintomatologia oposta, com taquicardia, perda ponderal (peso) e intolerância ao calor. As hormonas da tiroide estão na base do metabolismo a nível celular.

O hipotiroidismo é uma das principais doenças da tiroide. O que provoca esta condição?

A principal causa de hipotiroidismo é a tiroidite de Hashimoto. Trata-se de uma inflamação crónica, autoimune, na qual desenvolvem-se anticorpos que reagem contra a tiroide. Surge com maior frequência nas mulheres e em idades mais avançadas, podendo ter causas ambientais como a poluição ou ainda com a privação do sono. Há também uma componente hereditária, sobretudo de mães para filhas ou de avós para netas.

Ainda no hipotiroidismo temos também as tiroidites subagudas, um quadro muito típico que aparece na primavera ou no outono. São desencadeadas por um vírus - adenovírus ou rinovírus - que podem vir a provocar uma dor forte no pescoço, muitas vezes confundível com otites, uma vez que apresenta uma irradiação característica no ouvido. Mais tarde, e habitualmente, surge o hipotiroidismo.

Depois há as tiroidites pós-parto, extremamente importantes, porque podem haver hipotiroidismos que se desenvolvem no pós-parto que não são diagnosticados e podem ser confundidos com depressão pós-parto.

Outra das principais patologias da tiroide é o hipertiroidismo. Como se caracteriza esta doença?

Em relação ao hipertiroidismo, costumamos dizer que é como ter um carro que, em vez de andar a 80 km/h vai sempre a 300 km/h. As pessoas quando nos chegam vêm muitas vezes com palpitações, com o coração a bater a 140 batimentos por minuto e perdem muito peso. Esta é uma doença autoimune, muitas vezes designada por doença de Graves, que pode ser acompanhada por exoftalmia (olhos que parece que saem da órbita). É uma doença mais difícil e demorada de tratar. Ao contrário do hipotiroidismo, o objetivo do tratamento é inibir os efeitos da hormona.

Há ainda outras duas causas de hipertiroidismo, também frequentes. Uma são os nódulos tóxicos que produzem hormona tiroideia. Se for mais do que um nódulo denomina-se bócio multinodular tóxico. Nesta condição são os próprios nódulos que, autonomamente, começam a produzir hormona.

Outra situação são os hipertiroidismos secundários à medicação. É frequente nas pessoas idosas que fazem uma terapêutica que é o Cordarone®, a amiodarona para as arritmias, que tem uma quantidade elevada de iodo que pode desencadear um hipertiroidismo de difícil controlo. São doentes vigiados de 3 em 3 semanas e têm de substituir esse tratamento por outro, além de, muitas vezes, terem de fazer cortisona para controlo.

Quais os principais sintomas do hipotiroidismo e do hipertiroidismo?

Os sintomas do hipotiroidismo passam muitas vezes despercebidos. Aparecem de forma insidiosa, dificultando o diagnóstico precoce. Podem começar com uma instalação progressiva de cansaço fácil (após subirem umas escadas, por exemplo), de edemas dos olhos, de um ligeiro aumento de peso de 2 a 3 quilos, com a pessoa a fazer exatamente a mesma coisa. Pode haver tendência para depressão, choro fácil, mas também queda de cabelo, unhas fracas, pele seca e muito frio.

Por outro lado, o hipertiroidismo tem exatamente os efeitos inversos. Sente-se uma intolerância ao calor, palpitações, uma grande aceleração. São frequentes as insónias, os olhos muitas vezes proeminentes, uma grande ansiedade, e uma perda habitualmente muito significativa de peso, às vezes superior a 10 quilos. No entanto, e após ano e meio com medicamento de síntese, cerca de 30% dos doentes podem sentir melhoras da doença. Se tiverem uma vida calma ficam bem. É que o stress, para as doenças autoimunes, é um fator desencadeante. 

Quais as principais complicações?

As complicações mais graves no hipotiroidismo são o coma mixedematoso, que implica internamento e pode ser fatal. Neste quadro podem ocorrer derrames pericárdicos (na membrana que envolve o coração) que constituem uma situação grave. Pode conduzir também a uma rabdomiolise, um processo inflamatório do músculo que agrava o cansaço.

As principais complicações do hipertiroidismo dizem respeito à parte cardíaca com o desenvolvimento de arritmias, e à osteoporose.

Como é feito o diagnóstico?

Para uma avaliação inicial faz-se as análises clínicas TSH e T4 livre. São análises sanguíneas que não precisam de jejum.

A partir do momento em que haja um diagnóstico de hipertiroidismo ou de hipotiroidismo, pedimos sempre uma ecografia.

Que exames complementares podem ser feitos para auxiliar o diagnóstico?

Quando queremos mais investigação, temos de pedir uma pesquisa de anticorpos para a tiroidite de Hashimoto, que é o Anticorpos antitiroglobulina e o Anticorpos antitiroperoxidase. Se suspeitarmos de doença de hiperfunção, de doença de Graves, pedimos uma análise chamada Trabs.

No que consiste o tratamento?

Para a principal doença, que é o hipotiroidismo, é a reposição hormonal (levotiroxina), normalmente com a toma de um comprimido em jejum. A dose vai-se ajustando de acordo com os valores das análises periódicas.

No hipertiroidismo faz-se com o antitiroideicos de síntese (Metimazol®/tiamazol), em doses altas, com alguns efeitos secundários. Ao fim de mês e meio devem-se fazer análises mensais. Após ano e meio, se se suspende a medicação e a doença volta, inicia-se o tratamento com iodo radioativo. É um tratamento extremamente simples, mas que só se pode fazer em situações em que não haja doença ocular. Outro aspeto a ter em conta é que durante 10 dias deve-se evitar o contacto com crianças com menos de 10 anos ou grávidas, por causa da radioatividade. Nas situações em que esteja contraindicado o iodo radioativo e que não haja resposta à medicação acabamos por fazer a tiroidectomia total, para extração da glândula.

Que cuidados especiais devem ter as pessoas com doenças da tiroide?

Prevenir o stress e fazer exercício, assim como uma alimentação saudável são os cuidados transversais a todas as pessoas com patologias autoimunes. Num hipertiroidismo grave pode não haver condições para a prática de atividade física. A partir do momento em que a situação clínica estiver mais equilibrada é uma doença crónica como as outras. Por outro lado, e mais especificamente em doentes com hipertiroidismo, devem evitar comer peixe e marisco pois são alimentos que podem conter iodo.

Qual a relação entre doenças da tiroide e a COVID-19?

Têm havido vários estudos. Mas o que se observa, na prática clínica, está sobretudo relacionado com a obesidade e com a diabetes. Relativamente à tiroide, normalmente os doentes estão compensados e continuam a fazer a sua terapêutica. Por outro lado, a COVID-19 afeta o sistema imunitário. Uma vez que as doenças da tiroide têm uma base autoimune podem haver consequências. Agora a pandemia em si tem sido grande fonte de ansiedade. E sabendo que o stress é um fator desencadeante das doenças autoimunes como as da tiroide, sobretudo no caso do hipertiroidismo, a parte psicológica pode ficar ressentida e comprometer o estado de saúde.

Com que frequência devem ser feitas as consultas de Endocrinologia?

No caso do hipotiroidismo e em pessoas que têm a necessidade de mudar as doses (em casos muito difíceis de controlar), o controlo deve ser feito de seis em seis meses. Nas situações em que os doentes estão estáveis basta uma vez por ano. Isto não se pode fazer com o hipertiroidismo, que vejo quase todos os meses. Quando existe uma estabilização clínica as consultas podem ter uma periodicidade de três em três meses.
 

Sandra Cardoso, 45 anos

Diagnosticada com hipertiroidismo (doença de Graves) em março de 2021

“A partir de finais de 2020 comecei a sentir-me cansada e a perder peso. De tal maneira que deixei de conseguir fazer as habituais caminhadas. Tinha também muita fome, comia mas não engordava. Fui à consulta e fui diagnosticada com doença de Graves. Comecei a fazer medicação. mas tive uma reação alérgica e tive de retirar a tiroide. Três semanas depois deixei de me sentir cansada. Hoje estou acompanhada mas tenho algumas restrições alimentares, com particular atenção à ingestão de iodo. O iodo para mim é veneno! Com a minha situação estabilizada comecei a ter novamente uma vida muito mais ativa e em breve vou poder voltar a praticar desporto. Acho muito importante haver mais informação sobre o hipertiroidismo e as doenças da tiroide, porque no início, ficamos um pouco perdidos.”

 

Entrevista a

Isabel Manita

Endocrinologista